O destino de um espaço no centro do Rio de Janeiro, conhecido popularmente como “Buraco do Lume”, gera debates sobre sua verdadeira natureza jurídica. Afinal, é um “buraco” ou a Praça Mário Lago? E, sendo praça, como conciliar o uso público com possíveis interesses privados?
A complexidade reside na divisão do espaço. Uma parte, voltada para a Avenida Rio Branco, é oficialmente a Praça Mário Lago. Contudo, a área próxima ao Terminal Menezes Cortes levanta questionamentos, pois ali existiria um terreno particular de aproximadamente 2.800 m².
Este terreno, arrematado pelo Bradesco em 2019 por R$ 7.560.000,00, teria pertencido ao BANERJ até 2013, que permitiu seu uso pela população. Sua origem remonta à década de 1970, quando foi incorporado ao antigo Banco do Estado da Guanabara (BEG), em detrimento do interesse urbanístico coletivo.
No entanto, a propriedade imobiliária não se resume ao registro. A usucapião, ou seja, a posse mansa e pacífica de um bem por determinado período, pode alterar sua titularidade. O Código Civil estabelece que, após 15 anos de ocupação, ou 10 anos com “obras e serviços de caráter produtivo”, o possuidor adquire o bem sem indenização ao antigo dono.
A história do “Buraco do Lume” remonta ao final dos anos 1970, quando a prefeitura do Rio de Janeiro aterrou a área, que havia sido abandonada com grandes buracos devido à falência de uma empresa que pretendia construir no local. A medida visava evitar problemas de saúde pública, transformando o espaço em um jardim.
Em 1998, o BANERJ tentou obter indenização do município alegando restrições de uso impostas por um decreto municipal. A Justiça, no entanto, negou o pedido, reconhecendo a atuação do município no ordenamento territorial e na preservação do meio ambiente e da saúde da população.
As árvores existentes hoje são prova do longo período de uso público ininterrupto, quase 45 anos, com investimentos em urbanização e manutenção. Ignorar esses fatos e tratar o terreno como privado seria desconsiderar sua história e função social? Teria o proprietário o direito de reivindicar a propriedade décadas depois, buscando um potencial de construção favorecido por novas leis urbanísticas?
Se a posse pública não foi contestada tempestivamente, o terreno pode ter se tornado um bem público, afetado ao uso comum do povo. Nesse caso, caberia à prefeitura zelar por esse patrimônio, adquirido pelo uso incontestável da população.
A usucapião decorre da comprovação do fato da posse, independentemente de sentença judicial ou averbação em registro. Adquirir uma propriedade baseando-se apenas no registro imobiliário, sem verificar a possibilidade de usucapião por terceiros, pode resultar na aquisição de um bem de um “não proprietário”.
Não há impedimento legal para que um bem particular seja adquirido pelo poder público por usucapião, especialmente quando a posse é exercida pela população. Seria este o caso da Praça Mário Lago, abrangendo toda a sua extensão, desde a Avenida Rio Branco até o Terminal Menezes Cortes?
A prefeitura do Rio de Janeiro não pode ignorar essa questão, sob pena de abrir mão de patrimônio público. A usucapião, instituto secular, é legitimada pelo princípio da função social da propriedade, que impede que bens abandonados prejudiquem a comunidade.
Portanto, a Praça Mário Lago, em toda sua extensão, pode já ter sido conquistada como um bem público, pelo uso comum do povo, podendo já ser, assim, do povo.
Fonte: diariodorio.com



